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- 23 de out. de 2018
- 7 min de leitura
Atualizado: 3 de dez. de 2018
Eliane Pereira: a feira na mulher
por Eliza Hikary e Henrique Mendes

“Trabalhar em feira não é fácil, é sempre aquele sofrimento madrugada afora, carregando muito peso todo dia, com retorno nem sempre garantido. Mas é bom. Eu gosto”. Mudada a ordem das palavras, com uma ou outra adição de cacoetes pessoais e maneirismos distintivos, o estar-no-mundo do feirante se resume assim. É nítido, ao andar pela feira das Rocas, que ali há homens e mulheres que, a despeito do comum de seu dia-a-dia e da ordinariedade que suas vidas evocam, tocam no mais profundo e primordial instinto do animal-homem: a sobrevivência sem fome. Dali, daquelas Rocas centenárias de silêncios angustiantes e narrativas pulsantes a um só tempo, esses homens e essas mulheres se levantam, se refazem, se sustentam, trocam, vendem, compram e principalmente vão atrás do que vender,vindos de toda a parte, num cortejo laboral que sete vezes por semana se repete em diferentes pontos da cidade, e além dela, abastecendo a mesa nossa de cada dia.
Em Natal, há feiras-livres espalhadas pelas quatro regiões da cidade em dias da semana alternados, como é característica da dinâmica de toda grande cidade hoje. A feira das Rocas ocorre às segundas, e tem 212 feirantes cadastrados para vender nas 391 barracas oficiais, números que corroboram - além do fato de que determinados produtos precisam de mais espaço para serem expostos com conveniência - a constatação de que um único feirante cuida de mais que uma barraca, mas em geral não faz isso sozinho porque se tem uma coisa que a feira costuma ser é comunitária, e não raro, também familiar. A feira, como dizem os historiadores, é um evento social.
Das marcas que a feira deixa na cidade, a mais sobressalente talvez venha a ser o forte cheiro que acompanha a mistura do trabalho dos homens e mulheres, o ranço das carnes, dos queijos e dos animais, com a frescura ou podridão dos legumes, frutas e verduras transportados em caminhões tétricos, sob sol e sob chuva. Nas proximidades já se sente o exalar do odor característico da feira, e, mesmo o mais habitual dos clientes vez ou outra leva a mão ao nariz para se livrar por um instante do mal cheiro e recompor o olfato, necessário para escolher com qualidade os itens que ainda restam.
No livro de Homero Homem, ambientado nessa mesma Rocas de hoje, esse gesto era representativo de uma soberba abominável dos moradores da Cidade Alta, os xarias, em relação aos moradores das Rocas. É como se o incómodo com o cheiro dissesse do incomodado que ele é melhor do que quem convive diariamente com tamanha podridão e fedor. No entanto, como me disse um senhor que depenava galinhas, “os incomodados passariam fome”, não fosse quem está cotidianamente imerso em tão mal cheirosa paisagem para viver. E viver muitas vezes exatamente do que sobra em meio a podridão.
Xarias, para explicar, é um peixe típico das águas potiguares, vendido por pescadores do bairro das Rocas para os moradores de bairros próximos desde o século XVI e na obra de Homero Homem é descrito como o apelido pejorativo dado aos “luxentos” da Cidade Alta. As xarias são carnosas e de qualidade, por isso eram desde a época descrita por Homem, produto destinado à venda, e as famílias pobres, os cabras das Rocas, em geral não comiam esse peixe, mas sim o paul, menor, mais espinhoso e menos carnudo. Ou ainda, os amargos calangos matados a pedra pelos meninos no chão poeirento.
“Tudo que eu consegui até hoje foi feira"

Uma idosa está sentada em um banco de madeira que está escuro pelo uso constante. Naquele local, ela debulha vagens de feijão verde. O “moço bonito” com quem ela conversa, está cozinhando uma sopa caipira. Um senhor com dez peixes na mão pede “licença” para que consiga entregar sua pesca ao feirante que vende pescada, atum, tilápia e sardinha.
“Deus te abençoe, meu amor! Não vou pegar na sua mão agora já que a mão da titia está suja” Eliane Pereira fala com a menina de sete anos que ajuda o pai no seu caminho a barraca. Com o Mercado Público das Rocas como cenário ao fundo, a senhora de 48 anos vende frutas e marmitas compostas por “carnes variadas”. Eliane atua como feirante desde os oito anos de idade. “Tudo que eu consegui até hoje foi feira (...) Primeiro, você trabalha para ajudar os pais. Depois, quando vai ficando adolescente, é para se ajudar. Agora, eu trabalho para sustentar a minha casa e meus dois filhos”, comenta a “Eli”, como prefere ser chamada. Eliane namora com o seu marido, "J", desde os seus onze anos. "São trinta e sete anos juntos, e trinta anos de casados. Desse amor, já nasceu uma neta, filha de Jefferson, e Joalison está com um menino a caminho", comenta a sorridente Eli.
Na Rua São Pedro, a filha de pais donos de uma fábrica de doce chega de 5h. A feirante acorda de 1h para empilhar as caixas de alimentos com os seus filhos. Consequência da renda oriunda da feira, tem sua casa própria em Extremoz, onde vive com um de seus descendentes também feirantes, Jefferson, de 27 anos. De 19h na Rua homônima ao apóstolo de Jesus Cristo, Eliane, Jefferson, e Joalison, de 25 anos, levam os alimentos para a casa, para que sejam reutilizados na feira do dia seguinte. Desde que nasceram, os dois ajudam os pais na feira.

Sua “cria” Joalison, ajuda a mãe todos os dias na feira. Nos dias reservados para o descanso da família, nas terças e sextas, todos vão estocar seus produtos no Ceasa, e quando ocorre um imprevisto nos outros dias da semana, um dos "meninos" entra no carro e vai até o ponto de reabastecimento dos seus produtos. “Pode ser na quarta-feira, no Carrasco, no sábado no Alecrim, ou no domingo, na Cidade da Esperança, vou atrás da minha ‘veia’”. Joalison é casado há dois anos. Sua amada, Viviane, vende ginga e tapioca na praia. Ele, ao anoitecer, corre para o seu trabalho de vigilante na Secretaria de Educação do Rio Grande do Norte.
Os gritos de “carne bovina fresquinha” atuam como trilha sonora para a conversa com Eliane. A mãe afirma que é extremamente feliz trabalhando na feira, e que apesar de sua nova geração de feirantes estar com ela diariamente, ela reforça a necessidade deles não dependerem da Feira pelo resto da vida. "Quarenta anos em uma feira diariamente não é algo que eu desejo para os meus filhos. Eles precisam procurar algo em que eles possam não ser escravos de uma renda incerta”, relata Eliane, envergonhada por ver seu filho Joalison indo pegar mais água para usar no frango.
A feira é pública. Seus problemas também. O cenário da feira das Rocas, que vamos conhecendo sobretudo pelo olhar de Eliane, é de alegria e prosperidade no primeiro plano, o das aparências, mas é de precariedade, de medo e de abandono nos panos de fundo. A feirante relembra os tempos ainda piores, quando, ainda uma menina de oito anos de idade, ajudava os pais em barracas descobertas, no relento, à mercê do tempo: trinta anos passados com tão poucas condições de trabalho fazem Eliane ver as lonas que cobrem seus produtos da chuva e do sol como uma conquista inestimável.
Outra conquista que ela comemora são os banheiros químicos que os feirantes recentemente conseguiram conveniar com a prefeitura de Natal. Um requisito mínimo de dignidade que até pouco tempo era um sonho. Mas é de pequenos sonhos mesmo que se faz a feira. O próximo sonho é o policiamento na feira das Rocas. Eliane sabe bem que segurança é um direito, mas tem esbarrado em negativas da prefeitura quanto a essa demanda. A solução, como todas nesse espaço, é coletiva: um protege o outro, todos se respeitam, são concorrentes que trabalham lado a lado todo dia e formam um corpo forte.
Os muitos meninos-ajudantes da Feira das Rocas nos lembram o Joãozinho do livro ambientado nesse espaço. Aquele herói cuja saga consistiu em conseguir acessar o colégio secundário, feito inédito entre qualquer pessoa que ele conhecesse. Nossos cabras das Rocas, filhos de feirante, talvez não vejam a escola sob a mesma perspectiva que Joãozinho, que sonhava entrar no Ateneu para ter a possibilidade de viver diferente do que viviam os seus. Para os joãozinhos modernos, paridos da persistência secular da injustiça e da desigualdade, ter que ir a escola, como obrigam os conselhos tutelares que vez ou outra baixam na feira, é um estorvo, um empecilho para suas próprias sobrevivências.
O futuro, para eles, está onde esteve o passado e onde está o presente, de onde eles tiraram tudo que precisaram até agora. O futuro é a feira.
Em tempo antes do fechamento da matéria: No última segunda, 5, a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos ( SEMSUR) enviou agentes da Guarda Civil Metropolitana a Feira das Rocas com mandados para retirar as lonas que os feirantes estendiam ao lado de suas barracas para se protegerem do sol. A denúncia foi feita por uma feirante através de vídeos publicados no Facebook onde se ouvem os feirantes protestando e dizendo que iriam ficar no sol e apelam para que a mídia divulgue. A voz de outro feirante ao fundo grita constantemente para a pessoa que está filmando “Pare com isso! O cara vai fechar a sua barraca!”.
A SEMSUR alega que apenas o espaço das barracas devidamente registradas pode estar coberto com lona e não prestou maiores esclarecimentos. É como dizer que o alvará de venda concedido a um sorveteiro não o permite usar boné.
Feirantes e comerciantes ambulantes desempenham um trabalho de importante função social e não deveriam ser tão alijados dos princípios mais básicos de dignidade, como se tapar do sol.
Numa cidade do litoral nordestino, onde ao ar livre faz fácil 40ºC, isso é no mínimo falta de bom-senso. Feirantes são trabalhadores que cumprem uma importante função social e merecem condições dignas de trabalho. Parece que as histórias dos homens duramente reprimidos pela polícia que o Joãozinho de Cabra das Rocas ouvia ao pé da fogueira no livro continuam a se repetir. E os sonhos de Eliane vão ter que esperar novamente.
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