Até quando se pode sonhar?
- Tópicos Esp.em Jornalismo
- 23 de out. de 2018
- 5 min de leitura
Atualizado: 27 de nov. de 2018
por Lucas Melo e Jonatas Romeiro
Difícil não reparar nas mãos calejadas e enrugadas daquele senhor de aparência cansada. Boné mal colocado na cabeça, camisa de botão entreaberta e ombros caídos também marcam a sua aparência. A expressão corporal é de quem está exausto.
Mas, ao primeiro sinal de algum cliente em potencial passando perto de sua barraca, a voz, enérgica, anuncia: “Ó o filé! Esse aqui é filé, hein!”.
Com “filé” ele se refere ao feijão verde que está disposto em cima de sua barraca. Segundo o feirante, o seu feijão é tão bom que merece a classificação de “filé”.
Essa denominação específica é apenas uma demonstração das artimanhas e atalhos comunicacionais que uma pessoa bastante experiente, e que conhece de muito perto o funcionamento de uma feira livre, possui.
“Pode perguntar qualquer coisa para mim. Eu sei tudo sobre feira!”, revela José Alberto Martins, o personagem dessa história. Não existe presunção em sua voz ao dizer isso, na verdade, ele está apenas sendo sincero. E é difícil discordar de sua afirmação ao saber que ele tem 90 anos de idade e quase 80 de trabalho com feira.
As mãos marcadas pelo trabalho são a representação de sua história.

Trajetória
Ele é natural de Mangabeira, distrito de Ceará-Mirim, região metropolitana de Natal. Sua experiência com a feira livre começou muito cedo, quando tinha apenas 11 anos de idade.
Ele não foi influenciado por ninguém e foi o primeiro de sua família a enveredar nesse caminho. Entrou no ramo por conta própria, começando seus trabalhos no extinto Mercado da Cidade que ficava na Avenida Rio Branco, onde hoje está localizado o Banco do Brasil. Na época, segundo seu José, o mercado foi criminosamente incendiado e isso o obrigou a procurar outros lugares para trabalhar com mercadorias.
Rocas, Macaíba, Panorama e Santa Catarina são alguns dos lugares em que ele já trabalhou. Atualmente, além de atuar na feira de Extremoz, também trabalha na feira do Parque dos Coqueiros.
“Sempre consegui tirar meu sustento da feira”, comenta ele ao tirar o boné e olhar para cima com ar religioso, “Graças a Deus”, completa.
Ao longo da vida seu José teve 11 mulheres e 40 filhos, mas nem todos sobreviveram. Segundo ele, mais da metade morreu. Quando perguntado sobre seus netos e bisnetos ele revela uma expressão de surpresa misturada com comicidade e diz, um pouco constrangido: “Isso aí eu nem conto. São tantos netos e bisnetos que eu nem conto”, comenta.
Ele conseguiu dar sustento para todos com base nos rendimentos provenientes da feira.

Produtos e rendimentos
Ao longo das várias décadas como feirante, seu José trabalhou com diferentes tipos de produtos, mas na maior parte do tempo vendeu mesmo alimentos. Atualmente ele comercializa legumes, verduras, frutas, temperos e outros produtos que ficam dispostos ao longo de dez bancadas.
Os alimentos são adquiridos na Ceasa e a maior parte ele consegue vender. O que sobra, no entanto, vai para o lixo. “O que mais dá prejuízo é o tomate”, revela. Os produtos mais vendidos são os temperos.
Segundo ele, o movimento em Extremoz é fraco, mas já foi melhor. Quando começou na feira da cidade, há pouco mais de uma ano, seu José revela que “tirava até 1.500 reais” por dia trabalhado. Hoje, nos dias bons, consegue ganhar apenas 200 reais. Essa diminuição no fluxo financeiro no caixa do feirante é sintomático para ele e mostra que a feira está com os dias contados.
Essa previsão soa pessimista, mas está carregada de experiência. Além de feirante, José Martins já teve “três bodegas” (como eram chamados os pequenos comércios antigamente). Isso faz ele dizer com muita confiança que sabe “administrar e comercializar qualquer tipo de alimento”.
Difícil encontrar alguém que discorde disso. Muito pelo contrário: durante a entrevista feita com seu José, frequentemente pessoas paravam para conversar e afirmavam com bastante veemência que ele sabe bastante de feira. “Esse daqui sabe tudo! Tudo o que você quiser saber sobre feira pode perguntar pra ele!”, disse uma feirante que parou em um determinado momento para conversar.

Rotina
No geral, o dia é longo para quem trabalha com feira e com seu José não é diferente. Às 03h00 ele já está de pé preparando o seu carro velhinho para ir comprar os produtos que vão ser vendidos na feira. Depois disso ele volta para casa, descarrega tudo e, nos dias em que não vai para feira, fica peneirando goma de tapioca, debulhando feijão verde e “procurando alguma coisa para fazer”. Às 19h ele já está deitado para começar tudo de novo no dia seguinte.
Mesmo aposentado oficialmente desde 1994, José Martins não consegue se desvincular do perfil trabalhador que construiu ao longo da vida.
“Não quero ficar em casa descansando. Quero trabalhar até o último dia de minha vida!”, diz seu José mais uma vez tirando o boné e olhando para cima em referência religiosa. “Se eu passar um dia em casa, fico doente”, completa.
Desejos futuros
Para uma dupla de repórteres pouco experiente, e com muito ainda para aprender sobre a vida, é curioso ouvir de um senhor de 90 anos de idade sobre suas perspectivas para o futuro, pois a impressão é de que ele já conseguiu tudo o que precisava. Mas, no meio de uma conversa amistosa e um pouco tímida, há espaço para surpresas.
“Meu sonho é outro”, diz seu José no meio da entrevista. “Tenho outros planos para isso aqui”.
Ele revela que seu desejo agora é vender caldo de cana com pastel “frito na hora”, enfatiza. Também comenta que pretende negociar carne seca, carne de sol e queijo de manteiga. “Vou acabar com esse negócio de vender verdura. Todo mundo já está com isso”.
Sua revelação mostra um perfil empreendedor, já que ninguém na feira onde ele trabalha vende caldo de cana com pastel.
O que ele quer com isso é conquistar uma clientela muito específica: a das pessoas que vão para a feira comprar produtos diversos e têm vontade de matar a fome no local. Ninguém na feira de Extremoz vende caldo de cana com pastel, e seu José viu nessa ausência de opção uma oportunidade para melhorar os negócios.
Esse desejo já está bem próximo de ser realizado, inclusive. Pequenos detalhes técnicos ainda impedem a concretização do sonho, mas dentro de pouco tempo os moedores de cana estarão trabalhando na barraca do seu José, de acordo com ele.
Para trabalhar com feira “a dificuldade é grande”, diz ele. E completa: “a gente vai levando a vida, mas é complicado dizer que se vive bem em comércio”.
Complicado ou não, o senhor de aparência cansada, mas repleto de vontade de trabalhar, permanece em sua labuta quase diária.
No novo cenário comercial que se anuncia para José Martins, é possível que a palavra “filé” seja ressignificada mais uma vez. “Ó o filé”, provavelmente, vai ser a apresentação do seu caldo de cana com pastel frito na hora.
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