Resiste uma flor
- Tópicos Esp.em Jornalismo
- 23 de out. de 2018
- 3 min de leitura
Atualizado: 6 de nov. de 2018
Por Victória Gadbem e Anália Alencar
A história de Dona Maria Aparecida, a primeira mulher a trabalhar na feira do Alecrim.
No coração do bairro do Alecrim, (re)existe há quase cem anos uma tradição; a de unir em um emaranhado de cores e sabores, o que se traduz de mais genuíno dos costumes de um povo.
Debaixo das barracas que cruzam as avenidas Coronel Estevam e Presidente Quaresma, uma imensidão. Os sons que anunciam as ofertas; o debulhar do feijão por mãos calejadas; uma porção de quinquilharias e artefatos de outros tempos; e até o grunhir de bichos vendidos vivos, vão dando ritmo à feira-livre.
Para além do que se vende e se compra, o espaço é de aprendizado, ensina dona Maria Aparecida da Silva, a feirante mulher mais antiga do Alecrim. Dos oitenta anos de idade, cinquenta foram dedicados a este lugar. No início, vendia cebola, alho e pimenta com o esposo, mas depois de sua morte, resolveu mudar de ramo.
Assim desenvolveu um dom: com a manipulação de ervas, raízes e sementes, dona Maria, troca cura por afeto. Para cada doença,uma indicação.
A alma da anciã traz consigo a sabedoria da natureza, que segundo ela é dada por Deus, que vai “aluminando”os caminhos e indicando quais plantas deve usar nos preparos de seus unguentos.
“Deus é uma benção tão bonita que “alumina” o caminho da gente, eu sou analfabeta, não sei ler nem escrever, mas aí quando dá fé o senhor alumina os caminhos e me ensina a fazer. Eu vou sentindo as plantas que eu tenho que colocar e vou colocando”.
Os clientes, dentre eles médicos conceituados na cidade, provam das medicinas naturais e voltam satisfeitos para agradecer.
Assim ela vai se nutrindo e resistindo.

Nascida na divisa do Rio grande do Norte com a Paraíba, Dona Maria é espelho
muito sertanejo que teve uma infância pobre.
Com um misto de tristeza e graça, lembra que ainda criança começou a trabalhar “puxando cobra pros pés”.
“Meu sonho era estudar, mas meu pai dizia que meu lápis era a enxada”.
Com a família de agricultores, a pequena Maria vivia uma vida de “cigania”, peregrinando por diversas cidades do interior.
Cansada da instabilidade vivida na infância, Maria encontrou na feira seu porto seguro. Criou raízes, construiu amizades, conquistou independência financeira, educou os muitos filhos e netos de sangue e do coração durante esses 50 anos como feirante.
Assim, sua vida pessoal e a história do lugar vão se fundindo entre altos e baixos.
“Minha vida é um livro aberto”, brinca Dona Maria, e vai proseando baixinho e sem pressa sobre a vida, no meio daquele turbilhão que é a feira.

Ela lembra, por exemplo, de quando alguns políticos queriam tirar seu ponto no Alecrim e sua família precisou acampar lá para garantir o lugar .
Fala pesarosa da morte de três dos oito filhos e também de quando lutou na justiça para permanecer usando seu defumador de ervas na barraca.
Conta ainda de quando ameaçaram mudar a feira de lugar e ela e os colegas fizeram muito barulho para conseguirem permanecer naquele local.
Indagada sobre a organização da feira, ela reclama que há uns anos atrás a prefeitura resolveu padronizar as barracas e agora ela não pode mais fazer as amarrações do jeito dela.

Por fim, conta orgulhosa que diante de tantos obstáculos nunca deixou de trabalhar um dia sequer.
Dona Maria Aparecida, que é raiz, semente e flor, é sobretudo resistência.
Porque é e foi mulher e trabalhadora numa época e em um ambiente ocupado majoritariamente por homens.
Porque, já idosa, continua trabalhando e sustentando seu lar, em uma sociedade que tenta
invalidar quem já passou dos sessenta anos.
Porque distribui a sabedoria da natureza quando o mercado farmacêutico tenta fazer crer que só ele é possível e viável.
Porque acredita no colorido da feira.
Porque ocupa um lugar que vem perdendo cada vez mais espaço para as lojas e
supermercados.
Porque é amor em tempos de ódio.
Relatos das repórteres sobre a feira:
Comments